["Le Jardin Des Supplices", Octave Mirbeau]
"Aos Padres, aos Soldados, aos Juízes, aos Homens, que educam, dirigem, governam os homens, dedico estas páginas de Matança e de Sangue."
"...- Na verdade, creio bem que o assassínio é a maior preocupação humana e que todos os nossos atos derivam dele...Esperava-se uma longa teoria, mas ele calou-se.
- Evidentemente!.. - pronunciou um sábio darwinista...- E, meu caro, você acaba de emitir uma dessas verdades eternas, como todos os dias as descobria o lendário Monsieur de La Palisse... pois o assassínio é a própria base das nossas instituições sociais, por consequência a necessidade mais imperiosa da vida civilizada... Se deixasse de haver o assassínio, não haveria mais governo de espécie alguma, pelo simples fato de que o crime em geral e o assassínio em particular são, não apenas a sua desculpa, mas a sua única razão de ser ... Viveríamos então em plena anarquia, o que não pode conceber-se... Por isso, em vez de se procurar destruir o assassínio, é indispensável cultivá-lo com inteligência e perseverança... E eu não conheço melhor meio de cultura do que as leis.
E como se alguém prostestasse:
- Vejamos... Estamos à sós e podemos falar sem hipocrisia ?
- Por favor!... - assentiu o dono da casa. (...)
- Aliás - prosseguiu - o assassínio cultiva-se em si mesmo... Rigorosamente falando, não é o resultado desta ou daquela paixão, nem a forma patológica da degenerescência. É um instinto vital que nos habita.. que está em todos os seres organizados e os domina, como o instinto genésico¹... E isto é tão verdade que, a maior parte das vezes, estes dois instintos se combinam tão bem um com o outro, se confundem tão totalmente um no outro que, de certo modo, não são mais que um só e mesmo instinto e se deixa de saber qual dos dois nos impele a dar a vida e qual a retomá-la, qual o assassínio e qual o amor. Escutei as confidências de um digno assassino que matava mulheres não para lhes roubar, mas para as violar. O seu desporto era fazer que o espasmo de prazer de um coincidisse exatamente com o espasmo de morte do outro. Nesses momentos - dizia-me ele - imaginava-se um Deus capaz de criar o mundo !
- Ah! - exclamou o dono da casa e célebre escritor... - Se vai buscar os seus exemplos aos profissionais do assassínio!
Suavemente, o sábio explicou:
- É que, mais ou menos, todos nós somos assassinos... Todos nós experimentamos cerebralmente, em graus menores, quero crer, sensações análogas... Refreia-se a necessidade inata do assassínio, atenua-se a sua violência física, dando-lhe exutórios legais: a indústria, o comércio colonial, a guerra, a caça, o anti-semitismo... porque é perigoso entregar-se a ele sem moderação, fora das leis, e porque as satisfações morais que dele se tiram não valem a pena, vistas as coisas, para que alguém se exponha às comuns consequências do ato, a prisão... os colóquios com os juízes, sempre fatigantes e sem interesse científico e, finalmente, a gilhotina...
- Você exagera... - interrompeu o primeiro interlocutor. - Só para os assassinos sem elegância, sem espírito, os brutos impulsivos e destituídos de toda a espécie de psicologia, o assassínio é um exercício perigoso. Um homem inteligente e que raciocine pode, com uma impertubável serenidade, cometer todos os assassínios que quiser. Tem a impunidade garantida... A superioridade de suas combinações prevalecerá sempre contra a rotina das investigações policiais, e digamo-lo, contra a pobreza das investigações criminalistas em que se comprazem os magistrados instrutores... Nesta matéria, como em todas as outras, são os pequenos que pagam pelos grandes... Vejamos, meu caro, admite que o número de crimes ignorados...
- E tolerados...
- E tolerados... era o que eu ia dizer... Admite que esse número é mil vezes maior que o dos crimes descobertos e punidos, sobre os quais os jornais tagarelam com uma prolixidade tão estranha e uma falta de filosofia tão repugnante?... Se admite isso, concede também que o gendarme não é um espantalho para os intelectuais do assassínio...
- Sem dúvida. Mas não se trata disso... (...) Eu dizia que o assassínio é uma função normal - e de modo algum excepcional - da natureza e de todo ser vivo. Ora é exorbitante que, a pretexto de governar os homens, as sociedades se tenham arrogado o direito exclusivo de os matar, em detrimento das individualidades em quem esse direito reside.
- Justíssimo! O nosso amigo tem toda razão... Por mim, não creio que exista uma criatura humana que não seja, pelo menos virtualmente, um assassino... Algumas vezes divirto-me nos salões, nas igrejas, nas estações, nos terraços dos cafés, no teatro, em toda parte onde passam e circulam multidões, divirto-me a observar, do estrito ponto de vista homicida, as fisonomias... No olhar, na nuca, na forma do crânio, dos maxilares, do zigoma das faces, todos, em qualquer parte de si, trazem à vista os estigmas dessa fatalidade fisiológica que é o assassínio... Não se trata de uma aberração do meu espírito, mas não posso dar um passo sem esbarrar com o assassínio, sem o ver flamejar sob as pálpebras, sem sentir o seu misterioso contato nas mãos que se estendem pra mim...No domingo passado fui a uma aldeia onde se realizava a festa do orago²... Na praça principal,(...) estavam reunidos todos os modos de distração. (...) Os cavalos de pau, as montanhas russas, os baloiços, atraíam pouca gente. Em vão os órgãos tocavam fanhosamente as suas árias mais alegres e os seus mais sedutores ritornelos. Outros prazeres requeriam a multidão em festa. Uns atiravam à carabina, à pistola, ou com uma velha balestra, contra alvos que figuravam rostos humanos; outros, com bolas, derrubavam fantoches, alinhados lastimosamente sobre barras de madeira e havia quem batesse com um malho numa mola que fazia mover, patrioticamente, um marinheiro francês, o qual ia trespassar com a baioneta, na ponta de uma tábua, um pobre Hova ou um irrisório Dahomeiano... Por toda parte, sob suas tendas e nas pequeninas lojas iluminadas, simulacros da morte, paródias de chacinas, representações de hecatombes... E toda aquela boa gente se sentia feliz! (...) Notei mesmo que estes divertimentos pacíficos ganharam, desde há anos, uma extensão considerável. A alegria de matar tornou-se maior e vulgarizou-se mais à medida que os costumes abrandam - porque os costumes abrandam, não duvidem... - Antigamente, quando éramos ainda selvagens, os tiros dominicais eram de uma pobreza monótona que dava desgosto ver. Atirava-se apenas contra cachimbos e cascas de ovos que dançavem em cima de repuxos. Nos estabelecimentos mais afortunados haviam pássaros, mas eram de gesso... Onde estava o prazer, pergunto eu?... Hoje, com a vinda do progresso, é fácil a qualquer homem de bem proporcionar a si mesmo, por dois soldos, a emoção delicada e civilizadora do assassínio... E ainda por cima se ganham pratos pintados e coelhos... Os cachimbos, as cascas de ovos, os pássaros de gesso que se partiam estupidamente, sem nada nos sugerirem de sangrento, foram substituídos pela imaginação feirante por figuras de homens, de mulheres, de crianças, cuidadosamente articuladas e vestidas, como convém... Depois faz-se gesticular e andar essas figuras... Por meio de um mecanismo engenhoso passeiam felizes ou fogem espavoridas. Aparecem sozinhas ou em grupos em paisagens de cenário, escalando muros, entrando em torreões, descendo de escantilhão por janelas, surgindo de alçapões... Funcionam como seres reais, têm movimentos de braço, de perna, de cabeça. Há umas que parecem chorar... outras que são como pobres... outras que são como doentes... outras vestidas de ouro como princesas de lenda. Na verdade, pode-se imaginar que têm uma inteligência, uma votnade, uma alma... que estão vivas!... Algumas tomam mesmo atitudes patéticas, suplicantes... Julgamos ouvi-las dizer: "Misericórdia!... não me mates!..." Por isto, é requintada a sensação ao pensar que se vai matar coisas que mexem, que avançam, que sofrem, que imploram!... Ao dirigir contra elas a carabina ou a pistola vem-nos à boca como que um gosto de sangue quente... Que alegria quando a bala decapita aquelas imitações de homens!... que sapateada quando a flecha rebenta os peitos de cartão e lança por terra os corpinhos inanimados em posições de cadáveres!... Todos se excitam, se encarniçam, se incitam... Apenas se ouvem palavras de destruição e de morte: "Rebenta-o!... aponta-lhe ao olho..., aponta-lhe ao coração... Está liquidado!" Assim como ficam indiferentes diante dos alvos e dos cachimbos, assim estas honradas pessoas se exaltam se o objetivo é representado por uma fugura humana. Os inábeis encolerizam-se, não contra a sua falta de destreza, mas contra o fantoche que falharam... Chamam-lhe covarde, cobrem-no de injúrias ignóbeis quando ele desaparece, intacto, atrás da porta do torreão... Desafiam-no: "Vem cá, miserável!" E recomeçam a atirar-lhe para cima, até o matarem... Examinem essa boa gente... Nesse momento são realmente assassinos, seres movidos apenas pelo desejo de matar. O bruto homicida que ainda há pouco dormitava dentro deles acordou perante a ilusão de que iam destruir qualquer coisa que vivia. O boneco de cartão, de farelo ou de pau que passa e torna a passar no cenário, não é pra eles um brinquedo, um pedaço de matéria inerte... Ao vê-lo passar e repassar atribuem-lhe inconscientemente um calor de circulação, uma sensibilidade de nervos, um pensamento, coisas que é tão asperamente doce aniquilar, tão ferozmente delicioso ver escorrer por feridas que foram feitas... Chegam mesmo a gratificar o boneco com opiniões políticas ou religiosas contrárias às suas próprias, acusando-o de ser judeu, inglês ou alemão, a fim de acrescentar um ódio particular ao ódio geral da vida, e reforçar assim, com uma vingança pessoal intimamente saboreada, o instintivo prazer de matar.
Aqui interveio o dono da casa que, por delicadeza para com os hóspedes e com o objetivo caridoso de permitir ao nosso filósofo e a nós próprios respirar um pouco, objetou molemente:
- Você fala apenas de brutos, de camponeses, os quais, concordo, estão em permanente estado de assassínio... Mas não é possível que aplique as mesmas observações aos "espíritos cultos", às "naturezas policiadas", às "individualidades mundanas", por exemplo, para quem cada hora da sua existência se conta em vitórias sobre o instinto original e sobre as persistências selvagens do atavismo.
A isto o nosso filósofo respondeu vivamente:
- Dê-me licença... Quais são os hábitos, os prazeres preferidos daqueles a quem chama, meu caro, "espíritos cultos e naturezas policiadas"? A esgrima, o duelo, os desportos violentos, abominável tiro aos pombos, as corridas de touros, os variados exercícios do patriotismo, a caça... coisas que são, na realidade, regressões à época das antigas barbáries quando o homem - se assim se pode dizer - era, em cultura moral, semelhante às grandes feras que perseguia. Aliás, não devemos lamentar que a caça tenha sobrevivido a todo o aparato mal transformado destes costumes ancestrais. É um derivativo poderoso por onde os "espíritos cultos e naturezas policiadas" escoam, sem grandes danos para nós, o que neles ainda subsiste de energias destruidoras e de paixões sangrentas. Sem isso, em vez de perseguir o veado, de matar o javali, de chacinar inocentes aves nas luzernas, fique certo de que seria atrás de nós que os "espíritos cultos" lançariam as suas matilhas, que seria a nós que as "naturezas policiadas" abateriam alegremente a tiro de espingarda, o que não deixam de fazer quando têm o poder, de uma maneira ou de outra, com mais decisão e - reconheçamo-lo francamente - com menos hipocrisia que os brutos... Ah! não desejemos nunca o desaparecimento da caça das nossas planícies e florestas!... É a nossa salvaguarda e, de algum modo, o nosso resgate... No dia em que ele desaparessece de repente, depressa a substituiríamos para o delicado prazer dos "espíritos cultos". O caso Dreyfus³ é para nós um exemplo admirável e nunca, creio eu, a paixão da matança e a alegria da caça ao homem se exibiram tão completa e cinicamente... Entre os incidentes extraordinários e os fatos monstruosos a que, quotidianamente, durante um ano, ele deu lugar, o da perseguição, nas ruas de Nantes, do Sr.Grimaux, é o mais característico e todo em louvor dos "espíritos cultos e das naturezas policiadas", que fizeram cobrir de ultrajes e de ameaças de morte esse grande sábio a quem devemos os mais belos trabalhos de química... Devemos sempre lembrar-nos de que o maire de Clisson*, "espírito culto", numa carta que foi publicada recusou a entrada na sua cidade a Grimaux e lamentou que as leis modernas não lhe permitissem "enforcá-lo alto e curto" como acontecia aos sábios nas belas épocas das antigas monarquias... Nisto foi o excelente maire aprovado por tudo quanto a França conta dessas "individualidades mundanas" tão requintadas, as quais, no dizer do nosso hospedeiro, alcançam em cada dia brilhantes vitórias sobre o instindo original e as persistências selvagens do atavismo. Note-se, por outro lado, que é entre os "espíritos cultos e naturezas policiadas" que se recrutam quase exclusivamente os oficiais, isto é, homens nem mais nem menos maus, nem mais nem menos estúpidos que os outros, escolhem livrementre uma profissão - muito honrosa, de resto - em que todo o esforço intelectual consiste em operar sobre a pessoa humana as violações mais diversas, em desenvolver e multiplicar os mais completos, os mais amplos, os mais seguros meios de pilhagem, de destruição e de morte... Não existem navios de guerra a que deram nomes perfeitamente leais e verídicos de Devastação... Furor... Terror?... E eu próprio? Ah! pois!... Tenho a certeza de que não sou um monstro... creio ser um homem normal, com ternuras, sentimentos elevados, uma cultura superior, requintes de civilização e de sociabilidade... Pois bem, quantas vezes ouvi rosnar em mim a voz imperiosa do assassínio!.. Quantas vezes senti subir do fundo do meu ser até ao cérebro, num fluxo de sangue, o desejo, o áspero, violento e quase invencível desejo de matar!... Não julguem que este desejo se tenha manifestado durante uma crise passional, tenha acompanhado uma cólera súbita e irrefletida, ou se tenha combinado com um vivo interesse de dinheiro... De modo algum... Este desejo nasce de súbito, poderoso, injustificado em mim, por nada e a propósito de nada... na rua, por exemplo, diante das costas de um transeunte desconhecido... Sim, há costas na rua que pedem a navalha... Porquê?...
Feita essa confidência imprevista, o filósofo calou-se um instante, olhou-nos a todos com um ar receoso... E prosseguiu:
- Reparem, por mais que os moralistas critiquem... a necessidade de matar nasce no homem como a necessidade de comer e confunde-se com ela... Esta necessidade instintiva, que é motor de todos os organismos vivos, desenvolve-a a educação em vez de a refrear, santificam-na as religiões em vez de a amaldiçoarem; tudo se alia para fazer dela a charneira sobre a qual gira a nossa admirável sociedade. Desde que o homem acorda para a consciência, insuflam-lhe o espírito do assassínio no cérebro. O assassínio, engrandecido até ao dever, popularizado até ao heroísmo, acompanha-lo-á em todas as fases da sua existência. Fa-lo-ão adorar deuses barrocos, deuses loucos furiosos que só se comprazem com cataclismos e, maníacos de ferocidade, se empanzinam de vidas humanas, ceifam os povos como searas de trigo. Só lhe darão a respeitar os heróis , esses repugnantes brutamontes, carregados de crimes e manchados de sangue humano. As virtudes pelas quais se erguerá acima dos outros e que lhe valem a glória, a fortuna, o amor, apoiar-se-ão unicamente no assassínio... Encontrará na guerra a suprema síntese da eterna e universal loucura do morticínio, do morticínio regularizado, arregimentado, obrigatório e que é uma função nacional. Para onde quer que vá, faça o que fizer, verá sempre esta palavra: assassínio, imortalmente escrita no frontão desse vasto matadouro que é a Humanidade. Sendo assim, como querem que esse homem, a quem inculcam desde a infância o desprezo pela vida humana, a quem votam o assassínio legal, recue perante o crime quando nele encontra um interesse ou uma distração? Em nome de que direito vai a sociedade condenar assassinos que mais não fizeram, na realidade, que conformar-se com as leis homicidas que ela edita, e seguir os exemplos sangrentos que ela lhes dá? Quê, poderiam dizer os assassinos se um dia obrigam-nos a chacinar uma quantidade de gente contra a qual não sentimos ódio, que nem sequer conhecemos; e quanto mais matamos, mais nos cumulam de recompensas e de honrarias?... Noutro, confiantes na vossa lógica, suprimimos seres porque eles nos incomodam e os detestamos, porque desejamos o seu dinheiro, a mulher, o lugar, ou simplesmente porque é para nós uma alegria suprimí-los... tudo razões precisas, plausíveis e humanas... E logo vem gendarme, juiz, o carrasco!... Aí está uma revoltante injustiça que não tem qualquer sentido! Que poderia a sociedade responder a isto, se se preocupasse pouco que fosse com a lógica?...
Um homem novo, que não pronunciara ainda uma palavra, disse:
- Será essa realmente a explicação da singular mania de assassínio de que, no seu entender, todos somos, original ou eletivamente, atingidos?... Não sei nem o quero saber. Prefiro acreditar que todo o mistério está em nós. Isto satisfaz melhor a preguiça do meu espírito a quem horroriza resolver os problemas sociais e humanos, que aliás nunca se resolvem, e isto fortalece-me nas idéias, nas razões puramente poéticas pelas quais sou tentado a explicar, ou antes, a não explicar tudo quanto não compreendo... Fez-nos há pouco, meu caro mestre, uma confidência terrível e descreveu-nos impressões que se tivessem tomado uma forma ativa poderiam levá-lo longe, e a mim também; porque muitas vezes eu também senti essas impressões e, ultimamente, nas circunstâncias banais que passo a contar... Mas, antes, permitam-me que acrescente que devo talvez estes estados de espírito anormais ao meio em que sempre fui educado e às influências cotidianas que em mim penetram sem que eu o saiba... Conhecem meu pai, o Sr. Trepán. Sabem que não há homem mais sociável, mais encantador do que ele. Também não há ninguém cuja profissão tenha feito de si assassino mais deliberado... Muitas vezes assisti a essas operações maravilhosas que o tornaram célebre no mundo inteiro... O seu desprezo pela vida tem qualquer coisa de verdadeiramente prodigioso. Uma vez, acabara de praticar diante de mim uma laparotomia** dificílima quando, de súbito, ao examinar a doente ainda no sono do clorofórmio, murmurou: "Esta mulher deve ter uma infecção no piloro***... Se eu lhe abrisse também o estômago?... Tenho tempo." E assim fez. Ela não tinha nada. Então, meu pai começou a coser a inútil ferida, dizendo: "Ao menos assim fica-se logo com a certeza." Foi a certeza tanta que a doente morreu nessa mesma noite... Outro dia, na Itália, aonde fora chamado para uma operação, visitávamos um museu... Eu extasiava-me... "Ah! poeta! poeta!", exclamou meu pai, que nem um instante se interessara pelas obras-primas que me transportavam de entusiasmo... "A arte!... a arte!... o belo!... sabes o que é?... Pois, meu rapaz, o belo é um ventre de mulher, aberto, em sangue, com pinças lá dentro!..." Mas eu já não estou a filosofar, apenas conto... Extrairão da narrativa que prometi todas as consequências antropológicas que ela comporta, se é que realmente as comporta..."
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Criei uma espécie de vocabulário, só para esclarecer as questões que me deixaram na dúvida, quando li esse trecho pela primeira vez. Eis:
¹ = instinto sexual de procriação da espécie;
² = santo padroeiro de uma capela ou igreja, a quem esse templo é dedicado. A palavra descende de oráculo, que significa a resposta de um deus.
³ = O caso Dreyfus foi um escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante os finais do século XIX.Centrava-se na condenação por traição de Alfred Dreyfus em 1894, um oficial de artilharia Judeu no exército francês. Dreyfus era, em verdade, inocente: a condenação baseava-se em documentos falsos, e quando oficiais de alta-patente franceses se aperceberam disto tentaram ocultar o erro. O escritor Émile Zola expôs o escândalo ao público geral no jornal literário L'Aurore numa famosa carta aberta ao Presidente da República Félix Faure, intitulada J'accuse! (Eu acuso!) em 13 de Janeiro de 1898. Nas palavras da historiadora Barbara W. Tuchman, foi "uma das grandes comoções da história". Enquanto que Bernard Lazare e Scheurer tinham até então defendido Dreyfus, Zola partiu para o ataque, denunciando os culpados pela farsa.O caso Dreyfus dividiu a França entre os dreyfusards (os apoiantes de Alfred Dreyfus) e os antidreyfusards (contra ele). A disputa foi particularmente violenta, uma vez que envolvia vários assuntos no clima controverso e agitado de então. De certa forma, estas divisões seguiam a linha de demarcação entre uma direita apoiando frequentemente o retorno à monarquia e clericalismo - ou seja, o envolvimento da Igreja Católica Romana na política pública - e uma ala esquerda apoiando a República, muitas vezes com sentimentos anti-clericais. A virulência das paixões levantadas pelo caso deveu-se ao anti-Semitismo em França. Em 1886 havia sido publicado o livro anti-semita de Edouard Drumont, "La France Juive". Intelectuais - professores, estudantes, artistas, escritores - assinaram pedidos intercedendo por Dreyfus.Em suas demonstrações gritavam "Vive Dreyfus! Vive Zola!". Do outro lado da barricada, os gritos eram de "Vive l'Armée! Conspuez Zola! Mort aux Juifs!" Dreyfus era apresentado como o bandido que vende os seus irmãos como Judas (supostamente) vendera o seu "Deus". Houve pilhagens de lojas de judeus, numa premonição da Kristallnacht da vizinha Alemanha. Houve verdadeiros pogromas na Argélia em Boufarik, Mostaganem, Blida, Médéa, Bab el-Oued. Houve violações, mortos e feridos.
* = Olivier de Clisson, o Carniceiro (23 de Abril 1336 – 22 de Abril 1407) foi um nobre bretão que atingiu o cargo de Condestável de França durante a Guerra dos Cem Anos. Clisson era de início um aliado dos ingleses comandados por Eduardo III de Inglaterra, mudando mais tarde a sua lealdade para França.Clisson nasceu como herdeiro de uma família de senhores locais vassalos do Ducado da Bretanha, uma zona chave no desenrolar da Guerra dos Cem Anos. O seu pai, Olivier de Clisson como ele, foi executado sem julgamento em 1343, por ordens de Filipe VI de França por alegadamente espiar a favor de Inglaterra. Após esta morte, a sua mulher Joana de Belleville levou a sua cabeça de volta para a Bretanha, para a exibir perante o filho e lhe arrancar um voto perpétuo de ódio aos franceses. Clisson foi então para Londres, onde foi educado na corte inglesa segundo os princípios de vingança contra França defendidos pela mãe. Um dos seus companheiros do exílio da juventude foi João de Montfort futuro Duque da Bretanha, mas apesar da proximidade de idade e de condição desfavorável, os dois detestaram-se mutuamente desde então. Clisson era, no entanto, seu vassalo e foi ao serviço de Montfort que iniciou a sua carreira militar, destacando-se por exemplo na batalha de Auray. A sua arma preferida era um machado de duas lâminas que empregava com uma ferocidade sobre os inimigos que lhe valeu a alcunha de o Carniceiro. Foi ainda durante esta fase da sua vida que perdeu um olho em combate, o que levou à sua segunda alcunha: o Zarolho.
** = Laparotomia é uma manobra cirúrgica que envolve uma incisão através da parede abdominal para aceder à cavidade abdominal. É também conhecida como celiotomia.
*** = Piloro é uma constricção na porção terminal do estômago que regula a passagem do quimo semi-digerido deste para o duodeno.
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"O Jardim dos Suplícios", Octave Mirbeau.
Enfim, o livro tem inúmeras partes interessantíssimas. Muitas introspecções que valem muito à pena serem lidas. Mas se eu digitar o livro todo, perde a graça. Se bem que esse livro não é encontrado aqui no Brasil facilmente. Sorte a minha ter ganho de presente, de uma pessoa realmente maravilhosa na minha vida.
O livro é um clássico da literatura francesa, tendo como título original: "Le Jardin Des Supplices". O máximo que a pessoa que me deu conseguiu encontrar, foi uma tradução portuguesa, feita por Marília Caeiro, vinda de Lisboa, Portugal.
O livro divide-se em duas partes, com conteúdos substantivos e literários extremamente distintos. Na primeira parte, Octave Mirbeau descreve a política francesa do século XIX, já no tempo da República, abundante em corrupção, favoritismo e incompetência. A segunda parte decorre algures na China, num contexto de selvajaria e barbárie. O personagem principal, anônimo, relata o lema da educação que lhe deu seu pai: “Tirar qualquer coisa a alguém e guardá-la para si, é roubo… Tirar qualquer coisa a alguém e passá-la a outrem, em troca de tanto dinheiro quanto se puder, é comércio… O roubo é estúpido porque se contenta com um só lucro, muitas vezes perigoso, ao passo que o comércio comporta dois, garantidos…”
O seu protetor político, Eugène Mortain, tem uma atitude semelhante no seu ramo de negócio - a política. Um diálogo entre ambos é qualquer coisa de caricato e esclarecedor: " Há na circunscrição que te escolhi uma questão que domina todas as outras: a beterraba… O resto não conta e é com o prefeito… Tu és um candidato puramente agrícola… mais ainda, exclusivamente beterrabista… Não o esqueças… Seja o que for que possa acontecer durante a luta, mantém-te inabalável nesta plataforma excelente…Sabes alguma coisa de beterraba?
- Palavra que não – respondi – sei apenas, como toda a gente, que dela se tira açúcar… o álcool.
- Bravo! Isso basta – aplaudiu o ministro com uma tranquilizadora e cordial autoridade… Explora até ao fundo esse conhecimento… Promete rendimentos fabulosos… adubos químicos extraordinários e gratuitos… caminhos-de-ferro, canais, estradas para a circulação desse interessante e patriótico legume… Anuncia desagravamentos de impostos, prémios aos cultivadores, direitos ferozes sobre as matérias concorrentes… tudo o que quiseres!... Nesta ordem de idéias tens carta branca e eu te ajudarei… Mas não te deixes arrastar para polêmicas pessoais ou gerais que poderiam tornar-se perigosas para ti e, com a tua eleição, comprometer o prestígio da República… É que, aqui entre nós, meu velho – não te censuro nada, apenas verifico –, tens um passado incômodo."
Depois de perder a eleição, o personagem central é enviado em missão “científica” para o Ceilão, mas apaixona-se durante a viagem por Clara, uma aristocrata inglesa que o convence a ir viver com ela para a China. Daí que a segunda parte do livro decorra num ambiente mais exótico e fascinante. Porém, cedo se percebe que aquilo que inicialmente aparenta ser um paraíso terrestre, é, na verdade, o inferno. O elemento central desta segunda parte é o Jardim dos Suplícios, parte integrante de uma prisão próxima do local em que ambos vivem. A descrição das torturas, dos instrumentos empregues e das expressões sádicas dos torturadores e carrascos é maravilhosa e excitante. Curiosamente, todo este ambiente contrasta com a beleza das flores e árvores que crescem no jardim banhado de sangue humano, e que Mirbeau descreve com uma precisão quase obsessiva. O jardim dos suplícios é um local belo e horrendo, as torturas mais infames são obras de arte, esculpidas com devoção por carcereiros dedicados e dementes. Se a escrita é extremamente cuidada e de fino recorte, o que ela retrata é grotesco, repugnante e abominável, aos olhos sociais. Mas é soberbo e lascivo, perante meus ávidos olhinhos sadomasoquistas.
É um livro que recomendo, com certeza.
Mas não à todos.